domingo, 14 de agosto de 2016

PESSOAS E COISAS



Lembro que na adolescência, quando ouvia falar em dignidade da pessoa humana, pensava logo: “que imbecilidade, isso é pleonasmo, se é humano, é claro que é pessoa também, pessoa e humano são a mesma coisa…”

Na verdade, na época o imbecil era eu, pois não sabia nem o que era “pessoa”, nem o que era “humano”, muito menos o que era “dignidade” (confesso que ainda sou um tanto quanto imbecil, essas coisas fazem parte do meu ser...). E o pior, como todo imbecil, eu tinha certeza de que sabia, sem ter a menor noção de que estava completamente enganado. Só muitos anos e muitas centenas de livros depois é que eu fui perceber que a única coisa que eu sabia era que eu não sabia nada

Hoje, depois de muito estudo (a única ação que liberta o homem), entendo que “pessoa” e “humano” são conceitos que se completam, somando-se um ao outro, fortificando e deixando bem claro determinadas características de cada um dos indivíduos que vão se constituir no maior bem jurídico tutelado pelo Estado e pelo Direito ocidental moderno: a característica de autodeterminação de cada um de nós.

Na verdade, o necessário acréscimo da palavra “pessoa” no conceito de “dignidade da pessoa humana” tem a maior função de deixar claro (principalmente ao Estado e a nossos governantes) que somos PESSOAS, e não COISAS.

"Pessoas” e “coisas” são categorias filosóficas desenvolvidas no decorrer de séculos de filosofia, e que na idade moderna se consolidaram e encontraram acolhida em nosso Direito ocidental, tendo sido o conceito de “pessoa” amparado por nossa Constituição e elevado à condição de princípio de nosso Estado Democrático de Direito (Art. 1°, III).

Em sua obra “Fundamentação da metafísica dos costumes”, o filósofo Kant explica a  distinção entre PESSOAS e COISAS, que, resumidamente, em um primeiro contato, podemos sintetizar em 3 afirmações básicas: (1) As coisas são determinadas pela natureza e as pessoas se autodeterminam a partir de sua vontade; (2) As coisas são meios para a realização de um fim enquanto as pessoas são fins em si mesmas; (3) As pessoas podem determinar as coisas enquanto que as coisas não podem determinar as pessoas.

Já no século XVI, o humanista Giovanni Pico della Mirandola, em seu famoso “discurso sobre a dignidade do homem”, afirmava que assim disse Deus a Adão: “(...) a natureza bem definida dos outros seres é refreada por leis por nós prescritas. Tu, pelo contrário, não constrangido por nenhuma limitação, determiná-la-ás para ti, segundo o teu arbítrio, a cujo poder te entreguei. Coloquei-te no meio do mundo para que daí possas olhar melhor tudo o que há no mundo. Não te fizemos celeste nem terreno, nem mortal, nem imortal, a fim de que tu, árbitro e soberano artífice de ti mesmo, te plasmasses e te informasses, na forma que tivesses seguramente escolhido. Poderás degenerar até aos seres que são bestas, poderá regenerar-se até as realidade superiores que são divinas, por decisão do teu ânimo.” Já falava de autodeterminação humana.

O filósofo Marx criticava o capitalismo dizendo que ele “COISIFICAVA” as pessoas, ou seja, transformava-as em COISAS, na medida em que as via como “força de trabalho”, ou “recursos humanos”. Sob essa ótica, as PESSOAS, que deveriam ser FINS EM SI MESMAS, são transformadas em MEIOS para se alcançar outro fim: a produção, ou a geração de lucro. E isso seria uma completa inversão de valores, péssima para a sociedade. Concordo com Marx, mas acrescento que o comunismo faz o mesmo com as pessoas, pois quer determinar o que cada um vai vestir, vai comer, onde vai morar, como o que vai trabalhar, o que vai pensar etc., tratando-as como MEIOS para um tal de BEM COMUM (seja ele o que possa ser…).

A importância de se distinguir PESSOAS de COISAS é essa: resguardar os direitos das PESSOAS. Impedir que as PESSOAS sejam tratadas como COISAS. Impedir que o Estado ou quem quer que seja submeta as PESSOAS às suas vontades. Garantir que as vontades das PESSOAS sejam respeitadas. Que cada um de nós possa buscar a sua felicidade da maneira que acreditar ser a melhor forma.

Então, quando dizemos que nosso Estado se funda na dignidade da PESSOA humana, estamos frisando a garantia de sermos FINS EM NÓS MESMOS, e em hipótese nenhuma sermos transformados em MEIOS para outros fins senão aqueles que desejamos. Que não sejamos usados. Que não sejamos manipulados.


Não nos deixemos ser “COISIFICADOS” por ninguém. Precisamos sempre lutar por nossa dignidade, por nosso respeito. Lutar para que continuemos sendo sempre PESSOAS e não sejamos nunca transformados em COISAS.

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